O cheiro do ralo
sobre fumos e fumaças
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O aroma é onipresente. E nauseante.
Até que se adapte, há desconforto. Em algumas ruas do centro urbano essa sensação é consideravelmente mais forte. Porém, como não dá para identificar de onde ele vem, instala-se um sentimento esquisito, quase neurótico, pois passa-se a crer que o odor se apoderou do seu corpo e mente de tal forma que já não será possível se desvencilhar dele. E não estou sendo hiperbólico.
Essa é a Nova Iorque de 2024, cidade que hoje exala o cheiro pestilento da legalização do consumo recreativo da maconha.
Pra quem não fuma nada, como eu, qualquer cigarro incomoda. É natural. O corpo estranha tudo aquilo que não está acostumado a receber. Contudo, como vivo em uma época de regulação dos espaços onde se pode exercer esse hábito, é raro ficar exposto muito tempo à fumaça — exceto a da poluição de São Paulo… E ainda que eventualmente me encontre numa circunstância esfumaçada, tenho total liberdade de ir, de vir e de me ausentar.
Este é o ponto de inflexão. Lá, não há escape.
O futum da erva se esgueira para dentro das lojas, restaurantes, bares, cafés, galerias de arte, hospedagens e estações do metrô, onde, com o advento dos vaporizadores, fuma-se também.
Essa fumaceira toda despertou em mim a curiosidade de saber como os moradores da metrópole estão reagindo à novidade canábica.
Mal pesquisei <<maconha, nova iorque, cheiro>> no Google e tive acesso a uma porção de artigos, uns mais noticiosos, outro mais analíticos, dos mais variados jornais, quase todos pouco elogiosos, como supus.
Escolhi, dentre eles, esse aqui para compartilhar com vocês.
Enevoado e mareado depois de quase 6 dias na cidade, pensei seriamente na seguinte questão: a liberdade colateral que advém de uma liberdade conquistada legalmente deve ser compulsoriamente permitida? Ou melhor: pode a liberdade gerada pela liberdade ser 100% livre?
Complexo, eu sei.
Mesmo sem usufruir das suas benesses, por crença pessoal, filosofia de vida e posicionamento político, sou favorável à iniciativa nova-iorquina. Mas sou peremptoriamente contrário a tudo que me afete sem que eu tenha como me defender, seja com o meu livre arbítrio, seja através de instrumentos legais.
De volta ao meu país, que tem outros obstáculos para transpor, caberia resumir toda essa história em um retumbante “problema deles”. No entanto, preservando a natureza pedagógica desta publicação, prossigo baforando o raciocínio, mas para outro lado agora, para o campo das causas e efeitos.
Assim sendo, poderia dizer que a legislação que liberou o uso recreativo da planta deveria ter projetado potenciais adversidades e objeções, e se esmerado para regular as condições do consumo.
Mas seria leviandade.
Além disso, se nos orientássemos exclusivamente por essa mentalidade preventiva, ficaríamos paralisados pelos desdobramentos hipotéticos de uma decisão, sobretudo aquelas em que as consequências não estão aparentes e são difíceis de prever.
É preciso, então, seguir adiante, afinal, o caminho se faz enquanto se caminha e a perspectiva que desejo evocar está justamente nesse trajeto.
Certas decisões, pela complexidade intrínseca e por modificarem o status quo, demoram para ser debatidas e implementadas. Contudo, uma vez levadas a cabo, é estritamente necessário que o ajuste fino se dê no curto prazo, pois caso isso não seja feito, a ideia central vai sendo desidratada pela ausência dessa calibragem acessória — como o questionamento acerca da legalização da maconha por conta da atmosfera aromatizada de Nova Iorque.
Portanto, em se tratando de processos de tomada de decisão, é esta leva secundária de ações que tornam sólidas as medidas principais.
Se me permitem, crio aqui uma metáfora para essa reflexão que regressa ao período neolítico: inventar o fogo é importante, mas controlar a fumaça também é, pois quando abundante e descontrolada, ela pode sufocar a razão.
E nós certamente não queremos isso.
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